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QUIXADÁ, MINHA MUSA, MINHA PAIXÃO.
João Eudes Costa
Quase não dormi. Num pastorear infindo da inquietude, esperei que a noite se fosse para o sol clarear, com intensidade, minha querida, e bela Quixadá, no dia de seu aniversário.
Após tanta expectativa; depois de repassar muito do que as retinas fotografaram em mais de meio século de amor a esta terra, ao amanhecer, fiquei estático, sem saber como fazer para abraçar a minha terra.
Na vigília, em tudo pensei. Ri, chorei, revi parentes e amigos que se foram. Corri pelas ruas empoeiradas da cidade velha. Redescobri caminhos. Reencontrei companheiros de infância. Revivi a ternura de meus pais e a convivência inesquecível dos irmãos. Só não sabia como felicitar nossa Quixadá, no transcurso de seu natalício. Fiquei entre indeciso e tímido, sem saber como externar o contentamento que experimentava.
Olhei para o céu buscando inspiração. Procurei, no firmamento, o caminho a seguir, como se no papiro celestial estivesse escrita a frase de saudação que expressasse o meu desejo de homenageá-la. No meu vagar pelo espaço, surgiu a figura da cruz amiga, firme, tranqüila, postada no topo do enorme monólito, de braços abertos, abraçando e nos querendo bem. A determinação Divina mostrou aquele monumento de fé e amor, lembrando que, quanto mais nos elevamos em busca de Deus, mais perto ficamos daqueles que amamos e de quem não desejamos nos distanciar.
Subi a pedra do cruzeiro. Chegar aos pés daquela cruz, símbolo da salvação e do amor, seria a maneira possível de enlaçar minha Quixadá. Apertá-la no peito e sussurrar, ao seu ouvido, palavras de carinho e juras de afeto. Colar a cabeça em seu peito e sentir o pulsar daquele coração de pedra, inviolável, que protege o amor que dedica a seus filhos.
A mesma cruz que, tantas vezes, me viu chegar correndo e onde sempre encontrei abrigo para a irreverência da juventude. Agora, pacientemente, espera pela minha vagarosa caminhada, acolhendo-me nos braços para o repouso merecido.
Assim, hoje, cheguei ao cume do cruzeiro para observar a beleza, avaliar a grandeza de nossa Quixadá e beijá-la carinhosamente. Pedi ao vento que levasse a mensagem de gratidão e respeito a esta cidade que me viu nascer e coloriu meus sonhos na juventude Que me confortará nas desventuras da velhice e me acolherá no seu ventre no meu repouso eterno.
Desta elevação bendita, conversei, demoradamente, com a minha Quixadá. Num dia festivo, não me pareceu tão alegre. Calada, quase imóvel, parecia pensativa como eu.
Por que está tão meditativa, como se soluçasse em silêncio a amargura da solidão? Por que aparenta tristeza, se o seu aniversário é motivo de alegria? Como pode a bela rainha chorar em seu trono na frente de seus vassalos?
Depois dessas interrogações, num monólogo que me levou ao êxtase, parei para escutar a minha Quixadá. O vento que há bem pouco esperava para levar a mensagem de amor, subiu para trazer o lamento de quem, com muito esforço, deixa escapar murmúrios que não cabem no peito comprimido pela emoção.
- Hoje, filho, eu não sei se estou alegre, pensativa, tristonha ou saudosa. Verdade que me consideram bonita e não se cansam de elogiar a escultura de meu corpo. Dizem que não sou mais aquela pequena vila que me dava forma de criança. Comentam que estou cada vez mais bela. Que as modernas construções modificaram meu rosto. Que as ruas asfaltadas deram firmeza aos meus pés. O intenso movimento em meu redor demonstra o quanto sou considerada importante. A energia, água, os esgotos e telefones vestem meu corpo com a roupagem da juventude, com o rosto maquiado e posto na moldura do progresso.
Preciso dizer, meu filho, que tudo isto me abre feridas profundas, motivo de muito sofrimento e muitas dores. Sou a beleza esplendorosa com saudade da singeleza de minha pequenez.
Os prédios bonitos que enfeitam meu corpo fizeram ruir as modestas moradas, onde nasci, dei os primeiros passos e começou nossa história. As avenidas pavimentadas enrijeceram meus pés, que não mais têm liberdade para caminhar nas ruas de chão batido, onde havia marcas da passagem de muitos de meus filhos que amei e por eles fui amada. Os bairros cresceram e fortaleceram meus músculos, mas destruíram a vegetação que abrigava nossa tranqüilidade e que nos protegia da poluição e nos livrava das doenças. Os edifícios, as ricas mansões que me dão como jóias, sepultaram as várzeas onde vocês brincavam, corriam e me faziam feliz.
As construções não respeitaram o nosso Sitiá e o seu leito foi aterrado. As suas águas que desciam do céu e corriam alegres para lavar os meus pés, agora estão envenenadas pelos detritos num desrespeito a um rio que nos viu nascer, ajudou a crescer e banhou o nosso corpo infantil.
Meus filhos já não conservam a tradição fraterna e se digladiam em lutas fratricidas, quebrando o sagrado elo de amor entre as famílias, o que me entristece e me deixa assim tão aflita.
Depois daquela confissão, despertei da profunda meditação. Voltei o olhar para a cidade que se espreguiçava aos meus pés, como se também acordasse de um terrível pesadelo. Desci rápido para consolá-la. Procurei-a, insistentemente, por entre a mudez destes corredores de pedra.
Depois de dobrar várias esquinas, deparei-me com crianças que riam, brincavam, corriam e se abraçavam, alegremente, na praça José de Barros. Fiquei contente, porque, ali, acreditei encontrar Quixadá no dia de seu aniversário. Porque foi também, naquela praça, que nasceu e viveu o seu tempo de criança.
Os filhos da nova geração, certamente, haverão de ler a sua história e não permitirão que o progresso sepulte as marcas que restam de um passado que é um exemplo de coragem, de memoráveis batalhas e consagradas conquistas.
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