sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O Fio da Meada

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Escrito por Natália Pesciotta

A história dos tecidos rendeu nosso nome, brigas e honras. Além de beleza e identidade. Por tramas artesanais ou industrializadas, cantamos, criamos estampas e vilas. Saiba por que até café, música e futebol têm a ver com os panos dessa terra.


Sem querer rasgar seda, somos Brasil por causa dos tecidos. Mal chegaram a estas bandas, os portugueses só queriam saber da árvore do tronco vermelho – o pigmento para dar cor aos panos era caríssimo na Europa.

Os nativos também usavam o tingimento. Sabiam fiar e tecer com instrumentos feitos de galhos. Apesar de fazer redes de dormir e faixas, nunca pensaram em cobrir o corpo. Logo vieram os jesuítas e, para vesti-los como exigia a catequese, foram os primeiros costureiros a trabalhar em teares horizontais por aqui.

Ficamos bons nisso. As capitanias hereditárias investiram em plantações de algodão, principalmente no interior do Nordeste, região que pôde ser habitada graças às condições favoráveis para a cultura. Até para a Inglaterra, mestre no assunto, o Grão-Pará e o Maranhão começaram a exportar – tanto a manufatura quanto a matéria-prima.

Pouco depois, contudo, Portugal cortou nossas asas. Em 1785 a rainha dona Maria manda ordem expressa: todos os teares deveriam ser desmontados e mandados para a Metrópole. Dizem que alguns foram para a fogueira. Ficava permitida apenas a fabricação de panos grossos de algodão para “uso e vestuário dos negros ou para enfardar e empacotar fazendas”.

Os senhores de engenho já faziam questão de vestir-se com tecidos europeus. A região de Minas Gerais, porém, bateu o pé contra a proibição porque a população, distante dos portos, havia desenvolvido sua produção. Com a Conjuração Mineira em ebulição, a ordem parecia uma afronta. Patriotas vestiam a camisa de tecido brasileiro como ato de rebeldia. Não estavam sozinhos. A Revolta dos Alfaiates na Bahia, mais popular, inspirava a fazer o mesmo. O líder Cipriano Barata andava com casaca preta de algodão da terra. Só quando a Família Real mudou-se para cá o alvará foi revogado.

Hoje somos a sexta maior indústria têxtil do mundo, o segundo maior produtor de denim – matéria-prima de algodão para a fabricação do universal jeans – e o terceiro na produção de malhas, ao mesmo tempo que esbanjamos riquezas na produção artesanal. No meio disso, muitas histórias foram tramadas. E ainda não perdemos o fio da meada.


Chita pra que te quero
Difícil um figurinista ou estilista discordar: o pano que mais tem a cara do Brasil é a chita. Verdade que ela deu lugar a tecidos mais modernos e talvez você nem a conheça pelo nome, mas a modalidade barata de fazenda de algodão marcou nosso imaginário. Primeiro, chita – que veio de “pinta”, em hindi – significava algodão estampado. Era um dos produtos desejados da Índia porque os europeus ainda não dominavam as técnicas de estamparia. Hoje quase sempre a base da chita é mesclada com poliester ou outros fios sintéticos. O nome costuma referir-se à sua estampa mais marcante, a florida bem tropical. Ela está nas roupas de São João, nas saias de dançar coco, nas camisas de congadas, no manto do boi-bumbá. Mas no passado também era roupa do dia a dia de escravos, gente da roça, de criança brincar. Até hoje forra mesas e colchões no interior.


Chita, chitinha e chitão
As estampas variam de acordo com o tamanho do padrão do motivo. Embora tenhamos importado os primeiros padrões de chita e chitinha, o chitão florido é invenção nossa. Começou a ser confeccionado nos anos 1950.


Saindo do armário
Nos anos 1960, o “flower power” do movimento hippie e o Tropicalismo colocaram a chita no auge. Na tevê, até Chacrinha vestiu-se de chitão. As estampas miúdas ganharam o apelido “chitinha-mamãe-dolores”, por causa de uma personagem da novela Direito de Nascer. Zuzu Angel despiu a chita dos preconceitos e levou-a para as passarelas. Foi estilista pioneira em resgatar brasilidade e voltar-se para o que as mulheres usavam nas ruas.


NOS ANOS 1950, CLARA NUNES era funcionária da tecelagem Cedro, em Caetanópolis, Minas Gerais. A fábrica foi a primeira do Brasil a fazer chita em escala industrial. O museu mantido pela empresa ainda guarda o cartão de ponto da sambista.


Cravo, canela e chita

Jorge Amado compôs o figurino de uma de suas personagens mais famosas, Gabriela Cravo e Canela (1958), de chita. No romance, quando a cozinheira chega fugida da seca e toma um banho, o patrão Nacib vê sua beleza. “No dia seguinte compraria um vestido para ela, de chita, umas chinelas também. Sem descontar do ordenado.” Depois de casados, ele lhe dá roupas e colares como os das senhoras chiques. Sem sucesso: “Vestidos pendurados no armário, em casa ela andava de chita, em chinelas ou descalça”. Depois que Sônia Braga viveu a personagem na versão televisiva do livro, em 1975, o tubinho do tecido virou mania pelo Brasil.


Trama
A trama é o conjunto de fios colocados no sentido transversal de um tear. Os fios que vão passar por eles, paralelos ao tear, são a urdidura. A combinação dos elementos cria a variedade de tecidos.


Pra não perder o fio da meada
A avó ensinou para a mãe, que ensinou para a menina moça. O tear manual em muitas cidadezinhas tece também a vida do lugar. Vai aglomerando mulheres em associações e resistindo à industrialização. É bem comum no Vale do Jequitinhonha, interior de Minas.
Desde a colheita do algodão, tudo é feito manualmente. Descaroçam, batem, desembaraçam e cardam a fibra, numa rústica linha de produção. Dobram os fios em meadas para enfim serem tecidos. As músicas de trabalho das fiandeiras, bem pontuadas, dão força e ritmo ao trabalho.
Fonte: www.almanaquebrasil.com.br

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