sábado, 11 de janeiro de 2014

Memórias de reisado



MEMÓRIAS DE REISADO
Marcos Mairton

Ponho-me diante do computador para escrever minha primeira crônica de 2014. Sinto-me um tanto saudosista, porque acordei lembrando o tempo em que participava de reisados, no bairro do Pirambu, no subúrbio de Fortaleza.

No primeiro fim de semana do ano - sexta ou sábado à noite, depois que a maioria das casas estava fechada e no escuro - um grupo se formava e saía cantando pela rua. Meus pais, meu irmão e alguns tios sempre entravam na brincadeira. Outros vizinhos também participavam.

Fazia-se um pequeno ensaio e depois se seguia, de casa em casa, numa espécie de serenata sacro-profana, que misturava músicas religiosas, cachaça e farofa.

Ó, Deus te salve, casa santa,
Onde Deus fez a morada!
Ó, Deus te salve, casa santa,
Onde Deus fez a morada!
Aonde mora o cálix bento
E a hóstia consagrada.

Na segunda ou terceira música, os donos da casa abriam a porta e nos recebiam com alegria, oferecendo comida ou bebida. Alguns davam até dinheiro, mas o que importava mesmo era a festa. Muitos se integravam ao grupo. A brincadeira começava com umas cinco ou seis pessoas, mas a quantidade aumentava rapidamente.

Eu achava engraçado perceber que, apesar de as casas serem pequenas e próximas umas às outras, apenas naquela onde cantávamos abria-se a porta. Os moradores da casa vizinha ficavam quietos, esperando que fossemos cantar lá. E nós íamos. E eles entravam na brincadeira também. A cada nova adesão, a meninada se agitava, aplaudia, pulava e dava gritos estridentes.

Era desse jeito que atravessávamos a noite. Homens, mulheres e crianças, cada um se divertindo ao seu modo, mas todos juntos, aproveitando a alegria de morar perto de pessoas que se conheciam e se respeitavam.

Mas, como sei que, hoje, em janeiro de 2014, algum leitor pode querer saber se tínhamos medo de ser assaltados, devo dizer que minhas lembranças são de quando eu tinha entre oito e onze anos, ou seja, em meados da década de 1970.

O Pirambu já era um lugar perigoso, porque sempre o foi. Mas era um perigo diferente. Havia homicídios, porque tinha uns caras valentões que achavam certo resolver suas diferenças na faca. Mas assaltos eram raros. Não havia essa história de bandidos equipados com armas de fogo, circulando por aí em carros e motocicletas roubados, fazendo “arrastões”.

Drogas? Sim, de vez em quando aparecia algum rapaz fazendo arruaças, e as pessoas diziam que estava “emaconhado”. Mas não se via jovens morrendo todos os dias, assassinados pelo credores do tráfico. Nem essas falanges de viciados que hoje se vê, matando para roubar um celular e trocar por pedras de crack.

Os perigos realmente eram outros. Aliás, alguns anos mais tarde, eu viria a saber que aquela também era uma época perigosa para quem se metia com política, criticava o governo ou simpatizava com ideias socialistas, mas, em minha inocência infantil, eu nem suspeitava que essas coisas existissem.

Para mim, aquele era apenas um tempo em que a gente podia cantar na rua, à noite, e acordar os vizinhos para cantar também. Tempo de verde nos quintais. Tempo em que o medo se chamou jamais.

Quem estiver sintonizado com minha saudade pode também clicar no link abaixo e ouvir Fagner e Sivuca cantando "No tempo dos Quintais".

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