domingo, 5 de outubro de 2014

A Triste Partida dos Animais



Quando nos deparamos com uma longa estiagem, consideramos sempre a maior, de piores consequências e a mais sofrida. Na realidade, estamos cansados de tanto martírio. Cada seca representa uma chicotada cruel que recebemos e o nosso corpo está chagado e doído de tanto ser batido. A fortaleza do nordestino, tão decantada em prosa e versos, está enfraquecida, desmorona-se a cada investida. A resistência vai cedendo porque as armas ao nosso dispor são arcaicas, impotentes para enfrentar a terrível batalha. Se o corpo encontra-se dolorido, com a força comprometida, a alma também está ferida e chora amargamente o drama que vive. Não somos nós apenas quem padecemos. Os animais igualmente sofrem. Esqueléticos, vagueiam nos campos sem pasto. Inútil, buscam água nos bebedouros secos, marcados pela lama retalhada pelo sol impiedoso e causticante. O homem chora a sua desdita. Aquele rebanho, embora modesto, representa anos de intensa luta. Foi tudo que sobrou do árduo trabalho das lides rurais. Por muito tempo, a esperança caminhava no pasto verde e bebia fartamente no riacho corrente. Sem rumo, desesperado, sozinho, sem ajuda, o rurícola se sujeita a um mísero salário, obrigado a integrar um programa que o Governo do século do computador denomina de assistência às vítimas da seca, que se repete em todas as grandes estiagens.
Enquanto isto, os órgãos criados para combate às secas continuam esvaziados, sem a mínima condição de desenvolver o importante programa, visando minimizar os catastróficos efeitos das secas na região nordestina. No momento não há opção. Tem que se desfazer do pequeno criatório. Entregar por migalhas os animais de estima, que ajudou a crescer e chamava carinhosamente pelo nome, sabia quem eram seus pais, data do nascimento, suas virtudes e suas fraquezas, era perder parte de sua própria vida. O abastado fazendeiro das zonas ricas do País chegou com a sua arrogância, muito dinheiro e comprou pelo preço que quis o que para o criador era toda a sua riqueza. O sertão fica cada vez mais pobre, sob o olhar indiferente dos que se acomodam nos palácios. Os capatazes tangem os animais às pauladas para o "brete", subindo a rampa, rumo aos carros que, de portas abertas, acolhem os famintos animais de nossa caatinga ressequida. Animais criados com tanto carinho e tratados com amor, são agora, como nós, vítimas da seca, espancados, expulsos da terra natal de onde partem para nunca mais voltar. O vaqueiro, que foi o portador da entrega, encosta-se às grades do gigantesco veículo finge contar os bovinos que, presos, maltratados e famintos iniciam a triste partida. De olhos úmidos, com coração em pranto, olha os animais, um a um, numa despedida cruel.
O vaqueiro não sabe contar; na realidade, ele está chorando. Cada carreta que parte é mais uma chaga que se abre no peito daquele pobre homem. Enquanto o carro corre nas estradas asfaltadas, os animais urram de tristeza, num grito de dor e despedida e o criador esconde o rosto choroso, com as lágrimas tirando a poeira da terra seca, pondo mais sofrimento no espírito do infeliz trabalhador do sertão nordestino. Desfilam as carretas, com os animais, que partem do Nordeste. O gado berrando, o criador chorando e a miséria cada vez mais aumentando nesta região seca do Brasil. O vaqueiro, com o peito a soluçar, guarda de lembrança o chapéu, as perneiras e o gibão de couro, porque sabe ter sido aquela sua última viagem. A voz, ao tanger o gado para a venda, não foi o cantar alegre do vaqueiro cantador. Era o grito de revolta, a música da saudade, o soluçar de um pranto. Era um peito que chorava os tristes acordes de seu último aboio.
João Eudes Costa
Presidente da Academia Quixadaense de Letras

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