ABORTO
João
Eudes Costa
Com os
olhos fitos no firmamento, uma mulher, com lágrimas a lhe banhar o rosto,
estática, parecia ouvir uma voz que descia das alturas. Era uma voz de criança.
Perplexa, parou a respiração para escutar e não perder uma única daquelas
palavras vindas do céu:
- Mamãe, eu tenho muita pena de sua solidão.
Bem que poderia estar a seu lado, preenchendo este enorme vazio de seu coração.
Tenho saudade dos dias que passei a seu lado. Pena que tenha sido tão pouco
tempo, mas o suficiente para sentir o quanto seria grandioso o nosso amor, se
não tivesse sido ceifado prematuramente.
Quando eu passeava em seu ventre,
alegrava-me o seu sorriso. Não gostava de vê-la triste. Morei nos castelos que
você construiu para nós. Dormi acariciado pelas suas mãos, que, me tocando
levemente, de olhos fechados e com o pensamento no amor, balbuciava,
carinhosamente: MEU FILHO.
Quando você afagava, abraçava e beijava meu
pai, naquela união bendita que somente o amor pode consagrar, estava, ali,
sorridente, entre os dois, afinal era o filho legítimo daquela sacrossanta
paixão.
Ficava contente com a sua demonstração de
ternura, dividindo comigo os seus sentimentos o que bebia, o que comia, seus
sonhos e até o mais confidente de seus pensamentos.
Já me sentia no mundo de vocês, sugando os
seios que você oferecia, brincando com os seus cabelos, agarrando-me às suas
mãos que não se cansavam de me proteger e ensinar os primeiros passos. Sonhava
envolvido com os brinquedos que meu pai trazia e que você, não sem antes
beijá-los, entregava a Papai Noel para colorir a minha
inocência.
Sentia-me feliz passeando em seu ventre,
testemunhando o grande amor entre você e meu pai. Foi num desses encontros de
nós três que ouvi a minha sentença de morte.
Não poderia nascer. Os preconceitos sociais
não me aceitariam. Seria a grande vergonha para a sociedade que aprova o crime e
repudia o amor. Apesar do impacto que senti ao ouvir a decisão, fiquei a pensar
se valia à pena viver em um mundo em que se condena um inocente para esconder o
delito dos que estrangulam a verdade e entronizam a mentira. Apesar da fraqueza
de vocês, que se curvaram ao falho julgamento dos outros, compreendi. Continuei
amando-os e os perdoei. Tive até pena da incapacidade do ser humano em lutar
para preservar o que construiu com sacrifício e afeto.
Mesmo assim, fiquei triste porque em você e
com você vivi meses de alegria, de sonhos e ilusões. De tão protegido em seu
interior, o que ouvi julguei ser um pesadelo. Não acreditava que alguém tivesse
a coragem e o poder de me agredir em suas entranhas. Para mim, estava depositado
num sacrário inviolável, que nem mesmo a maldade seria capaz de me
atingir.
Um dia, porém, fui cruelmente torturado.
Fugi. Tentei esconder-me. Resisti, mas fui impotente para lutar contra a força
organizada do mal. Agarrei-me a você, enquanto pude. Inútil, na realidade era um
pequeno indefeso. Grande apenas o meu coração que precisou crescer logo para
acolher o grande afeto que já sentia por você, minha
mãe.
Aquela mulher pálida ouvia estarrecida a
comovente confissão de revolta, amor e perdão. De súbito, como se despertasse
daquele enlevo, passou, nervosamente, as mãos sobre o rosto, tentando enxugar as
lágrimas de remorso que rolavam em abundância.
Parou, por um momento e, no mesmo estado de
êxtase, ainda ouviu a voz do anjo, que, subindo às nuvens,
concluiu:
- Não enxugue seu rosto mamãe. Deixe estas
lágrimas, que brotam do mais profundo de seus sentimentos, lavar sua face
sofrida. Tirar a sujeira da maldade com que o mundo a obrigou a sacrificar o seu
grande amor. Deixa mamãe esta lágrima descer devagar, passeando em seu rosto,
como se fosse um longo beijo de conforto e perdão.
Não expulse esta lágrima de sua saudade e do
seu remorso. Permita que ela fique um pouco mais. Esta lágrima, mamãe, que teima
em ficar, que não a esqueceu e aprendeu a perdoar: “SOU
EU”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita, indique aos amigos.