segunda-feira, 15 de abril de 2013

UMA CONVERSA MIUITO ÍNTIMA


UMA CONVERSA MUITO INTIMA (Conto)

Blogue de vitorfaria :Conhecer, aprender e evoluir, UMA CONVERSA MUITO INTIMA (Conto)
Sentado no sofá aconchegado pela manta que lhe cobria as pernas e com a cabeça apoiada numa almofada grande que, simultaneamente, lhe amparava as costas e lhe permitia mante-las numa posição quase ereta, o homem tinha deixado descair sobre os joelhos um livro aberto ainda um pouco seguro por uma das mãos, enquanto o sono o vencia e o obrigava a dormitar um pouco.
Não aparentava a idade que tinha, apesar da doença que lhe ia roubando carnes e aspeto mais apresentável. O rosto emitia uma expressão serena e tranquila que só uma dor ou outra, a espaços, a conseguia alterar.
De súbito, algo o obrigou a despertar. Abriu os olhos e, surpreendido, encarou a figura que, plantada na sua frente, parecia querer questioná-lo. Num esforço evidente, procurou identificar quem era, mas apenas conseguiu a vaga sensação de já o conhecer. Curiosamente, não se sentiu intimidado nem preocupado, pelo que aguardou serenamente que lhe fosse esclarecida a presença inesperada, pela própria personagem, enquanto tentava mais um esforço de memória para se lembrar de quem se tratava. Era um homem ainda jovem. - Bastante jovem. - Pensou ele com alguma estranheza. Mas não conseguiu mais do que isso, até que o visitante falou.
- O que fizeste tu desse corpo? Ao que vejo, está num estado lastimável.
- Tens razão. Não está lá muito famoso não senhor. Terei abusado de mais ao longo dos anos. É a vida.
- Reconheces então que nesse particular em toda a linha.
- Talvez. Mas, reconhecer isso, agora, de pouco me servirá.
- Sempre se aprende com os erros. Já te esqueceste disso?
- Não. Mas o que eu quis dizer é que, nesta vida, já de pouco me servirá tal constatação.
- A propósito desta tua vida…Como é que tu, globalmente e sinceramente a classificarias?
- Mais perdida do que achada.
- Então, achas que a tua alma irá fazer, no fim, esse balanço negativo.
- Acho. Mas tu, pareces-me novo de mais para estares a fazer-me tais perguntas. Afinal qual é a tua intenção?
Sorrindo, o jovem respondeu:
- Ter contigo uma conversa intima sobre o que foi a tua vida até agora.
- Com que direito?
- Com o mesmo que te assiste ou, quem sabe, até com mais do que tu possas imaginar.
- Mas afinal quem és tu?
- Sou o espírito dos teus vinte anos.
- Tretas. Como é que isso é possível?
- Tudo é possível, desde que se acredite. Tu não acreditas que tens uma alma?
- Claro que acredito. Mas se ela está comigo, como pode estar aí, nessa tua imagem que, agora reconheço, muito parecida comigo quando tinha a tua idade?
- Eu não disse que era a alma dos teus anos vinte. Disse que era o espírito, que não é exatamente o mesmo. Um dia acabarás por perceber isso.
- Mas não podes explicar?
- Bem…Tu sabes que a alma é uma centelha de Luz Divina, não sabes?
- Sei.
- Uma centelha com milhões de reflexos. E eu, sou apenas um deles.
O homem do sofá ficou calado, tentando organizar as ideias e perceber até que ponto estaria mesmo acordado ou se tudo não passava de um sonho. Por isso, fechou o livro que ainda segurava aberto numa das mãos e pouso-o numa mesa a seu lado. Por fim, resolveu, erguer de novo os olhos. Constatou que o visitante ainda lá estava, olhando-o com um sorriso meio trocista, como se adivinhasse a pergunta que lhe começava a bailar no cérebro. Sentiu-se desafiado e, por isso, foi com entoação de igual desafio que perguntou:
- A tua presença é sinal que estou morto, ou que vou morrer dentro em pouco?
- Assustado?
- Não. Apenas curioso.
- Achas que esse teu convencimento de que não temes a morte é genuíno?
- Se és quem dizes ser, sabes que sim. Só temo o sofrimento desnecessário.
- Bem. Sendo assim, achas que estás preparado?
- Nunca se está preparado para morrer.
- Ainda te falta fazer alguma coisa nesta vida?
- Tudo.
- Como tudo?
- Tudo o que não fiz como devia.
- E achas que vais conseguir fazê-lo agora?
- Não. Mas se fizer só uma coisa que seja, já terá valido a pena.
- Como por exemplo?
- Sei lá. Talvez ser mais solidário.
- Essa parece-me bem mais um dos teus enganos, pois se alguma coisa fizeste de jeito nesta tua vida, foi sempre seres solidário para com quem precisava.
- Não tinha, nem tenho essa noção, mas se tu o dizes…
- Digo. E digo-te mais. Esta tua vida falhou não nas coisas que fizeste, mesmo as erradas, mas sim naquilo que era suposto fazeres e não fizeste por clara opção de livre arbítrio.
- Queres tu dizer, que tinha um rumo traçado e optei por outro?
- Demasiadas vezes.
- Conclusão. Afinal, sou eu, que tenho razão…mais falhada que conseguida.
- Não te preocupes com isso agora. Na altura certa, farás as contas que tens de fazer.
- Desculpa. Ainda não percebi porque vieste e a que vieste se realmente não és apenas um daqueles meus sonhos meio loucos, qual é razão desta visita?
- Já te disse. Conversar contigo sobre esta tua vida.
- E porque não sobre as outras?
- Isso é assunto arrumado. Pelo menos enquanto viveres esta.
- Muito bem. Que queres tu que eu diga sobre esta minha vida? Que foi feliz? Que foi uma desgraça? Que valeu a pena? Que não valeu…Afinal, seja qual for a resposta que te dê à cerca destas questões, será sempre a minha visão sobre elas e não uma avaliação completamente isenta.
- Porquê? Não consegues ser isento sobre ti próprio? Nem mesmo nesta altura?
- Qual altura? Que altura é esta assim tão importante, que só possa emitir uma opinião a meu respeito absolutamente isenta e verdadeira?
- Não é uma altura assim tão especial, mas sim um momento em que podes perfeitamente ser justo contigo próprio.
- Porquê? Só porque o fantasma da minha juventude me resolveu visitar?
- Não. A verdadeira razão é porque, na realidade, começas a sentir necessidade disso mesmo.
- Tudo bem. Aceitemos que é assim. Que posso dizer então em minha defesa? Talvez começando por citar a acusação…Ora deixa-me cá ver…Em determinados momentos da minha vida, fui injusto, menti, tive medo, fugi das responsabilidades, cometi erros de apreciação, de avaliação, por vaidade, por orgulho besta e por estupidez?...É bem capaz de ter acontecido e se calhar bem mais vezes do que eu próprio consigo reconhecer.
Agora deixa-me ver o que encontro como atenuantes… Nunca matei ninguém, nem feri, não traí quem em mim confiou por amizade ou companheirismo. Sempre me reconheci imperfeito e com tendências a errar mais do que em acertar. Conclusão: - Uma vida como tantas outras que não deixa história que a valha.
- Queres então tu dizer que esta tua vida foi tempo perdido…
- Bem…Não sei se diria tanto…
- Então porquê?
- Porque, amei e fui amado, alimentei amizades e afetos, procurei ser justo com os outros e estendi, sempre que me foi possível, a mão a quem dela precisava.
- Essa tua mania de racionalizares tudo, obriga-te a seres por vezes, como agora, quase que incoerente. Afinal em que é que ficamos? Valeu a pena ou nem por isso?
- Tens razão. Valeu. Valeu pelo que aproveitei, pelo que aprendi, pelo que amei e porque sei que a maior parte se ficou a dever a uma escolha prévia, da qual não tenho ideia completa, mas que teve, necessariamente, um objetivo; -Aprender e evoluir…Foi pouco? Acho que foi pouco? Ainda bem. Mau seria que julgasse o contrário.
- Finalmente uma coisa acertada. Agora diz-me lá uma coisa. O ´que é o presente e o futuro para ti?
- O presente é a procura. O futuro, será o resultado do que essa minha procura me proporcionar. Satisfeito?
- Bem…
- Não. Deixa-me agora colocar-te a pergunta mais importante desta conversa: - Qual é, verdadeiramente o objetivo da tua visita?
- A isso, meu amigo, terás tu de responder, pois foste tu que me invocas-te.
Nesse preciso momento, o livro que o homem pousara na mesa a seu lado, como que empurrado por mão invisível, escorregou para o chão. O baque surdo da queda, sobressaltou o homem, que logo se inclinou para o apanhar. Quando voltou a erguer o tronco e olhou em frente, encontrou-se de novo sozinho na sala. Durante uns longos segundos, não disse nada, parecendo que estava a procurar esclarecer a si próprio se, os momentos que acabara de viver, eram fruto da sua imaginação, de um sonho ou de uma inexplicável realidade.
Percebeu que não conseguiria chegar a uma conclusão que lhe esclarecesse as dúvidas. Assim, recordou de novo toda a conversa que acabara de ter, no fim, sorriu. Sentiu-se completamente em paz consigo próprio e então, com um suspiro, aninhou-se no sofá, encostou a cabeça e adormeceu serenamente.
Autor: Victor Faria

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