“O Estado
são êles”
No céu claro
passaram roncando dois enormes aviões. Pelo feitio ou pela pintura os rapazes
conheceram que era da FAB. E um dêles, que ouvira o rádio do jipe, explicou: - É
o marechal, que vai ao Cariri fazer propaganda eleitoral.
Lembrou-me a
minha velha mestra de música, Dona Elvira Pinho, abolicionista e republicana
histórica, mulher de rígida virtude particular e cívica. Uma de suas alunas era
filha do governador e vinha para as aulas no carro oficial. E D. Elvira
interpelava a garôta, em plena classe: “Como vai o nosso automóvel? Você
tem agradecido aqui às meninas o empréstimo do carro para você passear? Sim,
porque tanto o automóvel como o motorista, a gasolina, tudo é nosso - nós que
pagamos!” A menina ficava
encabulada ou furiosa, não sei, e Dona Elvira, abandonando a teoria musical,
dava um aula de boa ética republicana. Que tudo pertence ao povo, pois quem paga
é o povo. Os governantes que gastam consigo o dinheiro dos contribuintes estão
usurpando essas regalias - aliás, a própria palavra está dizendo: regalia -
privilégio do rei! República não tem rei, e, assim, os governantes republicanos
não deviam ter palácios para as suas famílias nem carros oficiais para passear
os meninos, nem comida e luxo à custa do povo. Tudo isso abolimos no 15 de
Novembro, mas tudo tem voltado - só falta voltar o rei! (como era uso entre os
republicanos históricos, D. Elvira só chamava o imperador “o rei”).
* *
*
Até a ditadura
ainda havia um certo pudor. Talvez porque ainda restassem vivos muitos
republicanos da cêpa de D. Elvira. Com o Estado Novo, todo o mundo amordaçado,
sem ninguém para estrilar, o hábito da regalia se
universalizou. Os homens públicos deixaram de separar o que era do Estado e o
que era dêles, ou antes, o uso e abuso dos bens públicos passou a ser privilégio
dos cargos e, por extensão natural, da parentela dos cargos. NInguém se lembra
mais da origem do dinheiro com que se custeia o luxo dos poderosos - aquêles
ínfimos impostos que o pobre mais pobre tem que pagar: o cruzeiro a mais no
preço do feijão, da farinha, do metro de pano, a licença para vender um pé de
alface ou um chapéu de palha. Talvez se êsses aproveitadores da riqueza pública
- e entre êles haverá muitos homens honestos - se detivessem um instante a
pensar de que pobreza, de que miséria, provém aquela riqueza, que não foi para
tal fim que a arrancaram ao triste contribuinte; que aquêle automóvel do seu uso
talvez custe dez leitos que faltam num hospital; que aquêle passeio de avião
talvez represente mais cem analfabetos; que aquela comissão no estrangeiro valha
por alguns quilômetros de estrada; que aquêle piquenique oficial em Brasília
talvez esteja custando o DDT que iria acabar a malária numa região inteira ou o
barbeiro - em outra; se êles pensassem, talvez recuassem envergonhados, e
devolvessem o seu a seu dono.
Mas êles não
se lembram. Vêem apenas o dinheiro fácil, abundante, bom de gastar. Dizem que se
um não gastar, outro gasta. E, acima de tudo, convencem-se de que êles próprios
e os seus é que representam o Estado, e que emprêgo da fazenda pública em
regalias pessoais para os que encarnam o Estado, é tão legítimo quanto os gastos
em ordenados de professôras, em remédios para os ambulatórios.
Aquêles dois
aviões, gastando material, gasolina e pessoal, tudo pago pelo povo, para que um
candidato faça a sua propaganda, sei que é uma gôta de água na torrente dos
gastos indevidos de dinheiros públicos, mas são um símbolo, ou uma amostra de
como anda completamente desvirtuado aquilo que se pode chamar o pacto de
govêrno, feito entre o povo e os seus líderes.
Quando se
funda uma nação, o povo promete obedecer aos seus chefes escolhidos e pagar uma
percentagem determinada sôbre tudo que produzir, para o sustento da
indispensável máquina de direção e defesa nacional. Os líderes, por sua vez,
juram não ser mais que fiéis servidores do povo que os emprega. Mas parecem que
juram à falsa fé. Porque, mal se apanham com a máquina nas mãos, esquecem de
quem é o dono e de quem é apenas o gerente. Transfere para a sua pessoa, a
grandeza que só era do cargo. Querem palácios condignos,
carruagens condignas, tratamento condigno,
privilégios condignos. Aí, a palavra que eles mais apreciam é
essa - condigno! E nessa preocupação de se regalarem a si,
acabam esquecendo para que subiram tão alto, e se convencem de que o povo existe
apenas para sustentar o Govêrno, e não o Govêrno para servir o povo. É a velha
história da criatura que devora o criador. E a tal ponto chega a confusão de
valores que, de consciência limpa e coração aberto, montados no dinheiro do
povo, gastando a mãos abertas os impostos que o povo paga, querem convencer o
povo, através de veículos, auto-falantes, propaganda impressa que o povo
custeia, que são excelentes, honestos e indispensáveis e merecem tôdas as
consagrações!
* *
*
E a gente fica
pensando, se aparecer por aí um demagogo que saiba explorar essas contradições
tão primárias. Que mostre que pode ser administrador dos dinheiros alheios, sem
tirar dêle a parte do leão. Um home, por exemplo, que pagasse as suas passagens
nos aviões, quando quisesse vir arengar às massas do interior. Que morasse em
casa sua, que usasse roupa, comida, automóvel, trem - tudo pago com o suor do
seu rosto. E que desse uma garantia de continuar assim, mesmo quando a chave dos
cofres estivesse em suas mãos. E que fôsse capaz de obrigar os seus subordinados
a se portarem também assim. Que fôrça terrível, que prestígio espantoso não
adquiriria um homem dêsses. Um homem que garantisse um govêrno onde o pacto
republicano se cumprisse com escrúpulo, onde o dinheiro de escola fôsse para
escola, e confisco de dólar do café fôsse mesmo para pagar trigo e gasolina, e
verba de soldado fôsse para comprar espingarda e fardamento. Um homem que
realizasse tal milagre - já pensaram o que conseguiria do povo um homem
dêsses?
Até dá
vertigens pensar. Talvez o divinizassem, como aos Césares. E, então, o homem,
enlouquecendo com o tamanho da sua fôrça, vendo-se César, iria adquirindo as
deformações de todos os Césares, e acabaria esquecendo o pacto inicial que
fundara a sua fôrça, - e se corrompia, também e aí começava tudo de
novo...
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