segunda-feira, 14 de julho de 2014

ESPECIAL CEGO ADERALDO...Inédito


Versos do arquivo particular do escritor João Eudes Costa, amigo e confidente de Aderaldo Ferreira de Araújo, que tinha o hábito de visitá-lo em sua residência quase todas as noites, quando não estava cantando pelo Brasil afora, e ditava seus versos para que João escrevesse. Quase todos são inéditos, não constando em livro já publicado.

SONHO DO CEGO ADERALDO

As nove horas da noite
Eu senti que tinha sede
tomei um pouquinho d`água
Depois me deitei na rede,
Comecei a me embalar
Dando com o pé na parede.

Devido aquele balanço
O sono conciliei, um sono reparador
No qual, eu até sonhei
Umas coisas esquisitas
Que ainda não decifrei.

Sonhei que via uma mata
E nela um vergel de flores,
Enfeitando aquele bosque
Num tom de todas as cores,
E em cima um sol causticante
Com raios abrasadores!

Vi sair daquele bosque
A figura de um cristão,
Um velhinho já corcunda
Arrimado em bastão,
Calçando umas alpercatas
Como gente do sertão.

Ele muito delicado
Me fez uma saudação
Com palavras tão bonitas
Que encheram meu coração
De alegria por sentir
Nele tanta educação.

Saudei ao velho dizendo:
"Tens uma linhagem nobre,
De uma ciência elevada
Que o céu desta terra cobre"...
E ele fez um ar tão triste,
E disse: " Eu sou muito pobre".

De fato pelo seu traje
Tinha um sinal de pobreza,
A roupa muito surrada
Aumentava-lhe a tristeza,
Mas ele sorriu dizendo:
- " Eu tive muita riqueza!"

Porém muitos dos meus filhos
Usaram de falsidade.
Fizeram com os vizinhos
Mil transações de amizade,
Levando tudo que eu tinha
Pra gastar com vaidade..."

" Venderam muita platina
Pedras preciosas e ouro,
Chumbo, ferro e manganês,
Desfalcando meu tesouro,
E inda dizem: - Que importa
Que o papai se acabe em choro?"

Mas ainda tenho moeda
De alto quilate e coroa,
Isto é: água perene
Que aos meus terenos água,
O meu lugar é sadio
E a terra é muito boa!"

Eu perguntei: -Quem és tu
Tão bondoso, tão gentil,
Que dizes ainda ter
Sobre a terra encantos mil?
Ele riu baixinho e disse:
'- Meu filho, eu sou o BRASIL..."





          
       ESPERANÇA

Quando perdi minha vista
O meu corpo faleceu
Vou mundo afora cantando
A sorte que Deus me deu
Carro de boi também canta
Mas é pau que já morreu.
       Cego Aderaldo

*Improviso na casa de João Eudes Costa, seu amigo particular.


A VIOLA DE ADERALDO NÃO EMUDECEU
JOÃO EUDES COSTA
Por mais impérvios que sejam os caminhos a percorrer, nada impedirá que, na terra, sejam cumpridos os desígnios de Deus. Quanto maiores as dificuldades que estorvam a observância de uma missão, maior será o brilho da conquista.
Foi palmilhando difíceis caminhos, superando enormes obstáculos que Aderaldo Ferreira de Araújo, nosso popular Cego Aderaldo, pontilhou a sua vida de vitórias. Fez dela um exemplo de bravura e mostrou o quanto vale a existência de um homem, quando posta, com a ajuda de Deus, a serviço do bem.
De origem humilde, pobre, cego, sem profissão definida, nem amparo legal de qualquer espécie, Aderaldo, se não fosse a sua fortaleza espiritual, teria partido para a mendicância e posto seu destino nas mãos de caridade pública.
Sem pai, com a mãe enferma, cego Aderaldo buscou na luz de seu espírito o clarão que iluminou a longa estrada a percorrer, já que os seus olhos mergulharam na escuridão eterna para um mundo, onde, até então, só conhecera agruras. No auge do desespero, levantou a mão trêmula, sem rumo, para o infortúnio de sua escuridão. Jesus o ergueu daquele fosso fúnebre e o guiou para uma vida de lutas e glórias.
Sem jamais ter feito um verso, cego Aderaldo tornou-se um poeta da mais fina sensibilidade. Sem nunca ter participado de cantorias ao som da viola, revelou-se um repentista renomado, cuja fama o fez admirado e respeitado em todo o País. Sem jamais ter tido uma aula de música, tornou-se professor, tocando vários instrumentos, regendo uma pequena orquestra que percorreu grande parte do Norte e Nordeste do Brasil. Sem nunca ter tido uma esposa, foi pai de 26 crianças pobres, a quem deu a tranqüilidade de um lar, profissão, e o exemplo de como vencer com brio, trabalho e dignidade.
Há os que dizem que Aderaldo foi o maior repentista do Nordeste. Outros contestam, alegando que, hoje, ele não teria como enfrentar os azes da cantoria. Tais comentários não espelham qualquer réstia de coerência. Não se pode nem se devem comparar talentos de épocas diferentes. Aderaldo nunca teve a vaidade de ser o melhor, nem se contentar em ser o mais fraco pelo fato de ter perdido a visão. Não devemos, pois, considerar Aderaldo o maior porque a sua humildade sempre o fez modesto. Igualmente não devemos tentar ofuscar o brilho de sua imagem, porque a sua vida de nobreza já representa uma luz que enaltece uma existência. Aderaldo deu exemplo de tenacidade, coragem e fé. Para ele tudo era possível. Como cidadão foi um padrão de honra, um vencedor. Como poeta foi um privilegiado pela inspiração Divina.
O que admiramos em Aderaldo, além de seu talento como cantador de viola, foi o empenho que sempre demonstrou em valorizar e prestigiar os companheiros de profissão. Jamais admitiu que se maculasse a imagem de um poeta repentista. Andar com uma viola, antes de Aderaldo, era motivo de restrições, pois, simplesmente, era considerado um desprezível, sem qualificação.
Para valorizar a profissão, nunca se envergonhou de empunhar a viola e adentrar nos palácios dos Governos. Ao lado dela, recebeu ovações nos auditórios universitários. Foi com personalidade que Aderaldo fez do poeta da viola uma figura de privilégio, de respeito e capaz de ser vista como um profissional do mais alto quilate e pendores especiais
Hoje, o cantador de viola conta com os mais diversos meios de comunicação, com alta tecnologia eletrônica, para divulgar a cultura popular. Cego Aderaldo, com denodo, divulgou a arte do improviso, nos costados de burros. Por várias vezes, deslocou-se com seus filhos e músicos, montado em animais, do Ceará ao Pará. Onde se arranchava promovia uma festa, porque, naquele tempo, Aderaldo era expectativa aonde chegava e aplausos onde se apresentava.
A distância que, hoje, os poetas populares atingem em segundos, pelo milagre da eletrônica, o velho cego conseguia com sacrifício, na cadência de sua perseverança e com o sacrifício do amor que dedicava a uma profissão, que conseguiu fazer respeitada e reconhecida como veículo da cultura.
Tive a honra de ser particular amigo e até confidente do saudoso Aderaldo Ferreira de Araújo. Sempre afirmava que não queria ser o maior cantador do Brasil, apesar de sua projeção. Com que mais sonhava, dizia ele, era um dia, o repentista brasileiro ser considerado um artista de admirável talento. Por várias vezes me fez observar que, se somente ele fosse importante, a cultura popular também seria sepultada no seu túmulo. Queria que, depois de sua partida, seus companheiros o substituíssem para dar continuidade à grande obra que Deus ordenou que se dedicasse, quando lhe tirou a visão.
Fico feliz em assistir à apresentação dos mais consagrados poetas da viola. Isto demonstra que a voz de cego Aderaldo não se calou. Sua inteligência espalhou-se pelo Brasil. Sua viola não emudeceu e continua sonora no punho dos que cantam o reconhecimento e a saudade daquele que lutou, bravamente, para que todos reconhecessem o talento e o valor do repentista Nordestino.
Cego Aderaldo viverá, eternamente, enquanto uma viola chorar e cantar, enaltecendo o símbolo do repentista, o exemplo da dignidade e o poeta popular que simplesmente quis cumprir, com resignação, os desígnios de Deus. Nos monólitos que nos circundam ainda ecoa a voz de Cego Aderaldo. No cume dessas singulares elevações passeia a figura respeitável do imortal repentista, pois, sempre dizia que, quando partisse, era em Quixadá que deixaria, para sempre, o seu coração.

Mote dado por João Eudes Costa a Cego Aderaldo, em sua residência:
Eu vi com os olhos da alma
A rainha do algodão

Brilhou uma nova estrela
Sobre o céu do Quixadá
Todo o povo do lugar 
Desejava conhecê-la
Eu tive o prazer de vê-la
Baixando da amplidão
Era nossa consolação
Um anjo batia palma
Eu vi com os olhos da alma
A rainha do algodão.

Verso dedicado à  Vandira Lúcia (Filha de João Eudes) - Em 27/02/1966.

Vandira, anjo encantado,
No teu lindo uso eu falo
Com o rabinho de cavalo
Mamãe fez seu penteado.
Teu pai fica consolado
Em te ver sem vaidade
Gozando a felicidade
tão virgem como uma flor
E hoje completou
Seus quatro anos de idade.



Matéria publicada no jornal por ocasião do aniversário de 92 anos de Aderaldo Ferreira de Araújo.
* Continuarei postando coisas inéditas sobre Aderaldo nos próximos dias.




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