sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Violação de correspondência


E-mail
Escrito por Bruno Hoffmann

Neste especial, violamos as cartas alheias e descobrimos segredos, histórias e divergências de gente como Carmen Miranda, Mário de Andrade, Chico Buarque e dom Pedro 1º.

Amigo leitor,


Parece que não. Mas houve um tempo em que não existia e-mail. E, pior: o telefone, quando passou a existir, era caro demais. Para se comunicar com quem estava longe, a saída era escrever uma carta de próprio punho, levá-la ao correio e esperar dias e mais dias pela resposta. Se ela viesse. Cada vez que o carteiro dobrava a esquina, era um burburinho. Os missivistas na janela, à espreita, torcendo pro sujeito colocar o envelope na caixinha (desde que não fosse conta a pagar, claro). E assim foi durante anos.

Toda essa história começou em 1500, quando Pero Vaz de Caminha – que dispensou carteiros para escrever para o rei de Portugal – relatou o “achamento” de uma nova terra. Ele descrevia os nativos como “pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”. E já previa a catequização indígena: “Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências”.

Enfim, o Brasil começou com uma carta. Foi uma carta exigindo a volta de Pedro 1º a Portugal que teria disparado o Grito do Ipiranga. Foi uma carta que comunicou ao País que Getúlio deixava a vida para entrar para a história. Foram cartas os principais instrumentos de denúncia do que passavam os presos políticos nos porões do regime militar.

Mas houve também cartas de amor. E elas entranharam-se de tal forma no imaginário popular que saltaram das gavetas para as canções: Pombo-Correio, Não me Mande Carta, Tim Tim por Tim Tim, A Carta que Não Foi Mandada... E, claro, Mensagem, com Isaurinha Garcia anunciando: Quando o carteiro chegou/ E o meu nome gritou/ Com uma carta na mão...

E tão antigo quanto as cartas deve ser o desejo de abrir a correspondência alheia. Se até de desconhecidos bate curiosidade, imagine se for de personalidades como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Chico Buarque, Santos-Dumont, Vinicius de Moraes, Carmen Miranda... Pois é a essa vontade que o Almanaque deu vazão. Violamos as cartas de ilustres brasileiros, em que se mostram desprovidos da imagem pública que mantinham. O tom é informal, direto, engraçado, triste, irritado. Enfim, humano. Uma viagem pela história do País a partir de seus escritos mais íntimos.


As libidinosas missivas do imperador
A fogosa relação entre dom Pedro 1º e sua amante, marquesa de Santos, foi notória. O imperador gostava de escrever para declarar o seu amor, com direito a súplicas quase adolescentes: Eu não quero que tu estejas nem um instante mal comigo, nem quero que tu suponhas que eu estou contigo. Logo passarei por tua casa, e espero que tu trates bem e sem que me mostre má cara.

Em outros momentos, porém, o tom era libidinoso. Forte gosto foi o de ontem à noite que nós tivemos. Ainda me parece que estou na obra. Que prazer!! Que consolação!!! Que alegria foi a nossa!!!! Deste seu amante constante e verdadeiro e que se derrete de gosto quando... com mecê.

As assinaturas eram um capítulo à parte. Iam de “Pedro” e “Imperador” a outras mais quentes, como “Fogo Foguinho” e a impagável “Demonão”. Por conveniência política, Pedro casou-se com a duquesa austríaca Amélia de Beauharnais. Como despedida, escreveu: Eu te amo; mas mais amo a minha reputação agora também estabelecida na Europa inteira pelo procedimento regular. Tu não hás de querer a minha ruína nem a ruína de teu e meu País.


Onze palavras da discórdia

O escritor Graciliano Ramos ficou noivo de Heloísa Medeiros em 1928, iniciando uma intensa troca de correspondências entre o casal. Em uma, porém, dá uma bronca na amada, por ter considerado a última mensagem seca demais. Chegaram-me as duas linhas e meia que me escreveste. Pareceram-me feitas por uma senhora muito séria, muito séria! [...] Onze palavras! Imaginas o que um indivíduo experimenta ao receber onze palavras frias da criatura que lhe tira o sono? Não imaginas.


Nenhum monstro

O padre José de Anchieta passou um tempo em São Vicente. De lá, escreveu para um padre romano explicando detalhadamente sobre a fauna do local. Conta das formigas vermelhas, das emas gigantes e dos lagartos de rio (jacarés). Também não esquece de explicar sobre os habitantes: Direi que entre estes brasis quase não se encontra nenhuma deformidade natural, e só raramente um cego, um surdo, um aleijado ou coxo, nenhum nascido monstro.


Aviões fora da guerra
Alberto Santos-Dumont ficou deprimido ao constatar que seu mais importante invento estava sendo usado em guerras. Numa carta escrita em 1926 a Antônio Prado (que viria a ser prefeito de São Paulo), mostra descontentamento em receber um convite do Senado para tornar-se general honorário: Não só isto é uma coisa ridícula, mas também parece até sarcástica, pois eu, em fevereiro, propus a abolição da aviação como arma de guerra. Seis anos depois, o inventor se suicidou.


Mario de Andrade, um capítulo a parte

Sete mil cartas para mais de mil pessoas
O jovem Mário de Andrade era admirador do poeta Vicente de Carvalho. Em 1914 mandou sonetos por carta, para que o ídolo opinasse. A resposta: total silêncio. O futuro modernista ficou magoado, mas decidiu que nunca deixaria ninguém sem resposta, principalmente se fosse um iniciante pedindo-lhe ajuda. Estima-se que Mário tenha escrito sete mil cartas a 1.100 pessoas, entre personalidades da cultura nacional e ilustres desconhecidos. Guardava todas as correspondências em pastas. Para preservar a intimidade alheia, pediu à família que só as tornasse públicas 50 anos após a sua morte. Com o prazo esgotado, a leitura do material atrai cada vez mais estudiosos. “Apenas elas permitirão uma vista completa da sua obra e do seu espírito”, defende o crítico literário Antonio Candido.


De Bandeira
Anita está apaixonada
Em correspondência com Manuel Bandeira, o poeta pernambucano confirma o suposto amor de Anita Malfatti por Mário de Andrade: O que lhe contaram de Anita não era intriga. Ela está apaixonada por você e esperava que você se definisse. Escreveu-lhe uma carta em outubro falando claramente no assunto e não tem resposta de sua parte. Está agitada e balançava entre: amor-próprio ofendido, se você recebeu a carta e não quis responder; e apreensão, de que a carta tenha ido para outras mãos que não as suas.


Para Sabino
Se tem mais de 35 anos, não lhe posso dar aplauso que valha

Em 1941, Fernando Sabino publica seu primeiro livro de contos, Os Grilos Não Cantam Mais. O jovem envia um exemplar a Mário, pedindo opinião. E ela veio: Se você quiser continuar sendo escritor, antes de mais nada tem que encurtar o nome. Tavares Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino. O que é impossível é Fernando Tavares Sabino. Me desculpe esta sinceridade. E prossegue: Se você está rodeando os 20 anos, de 20 a 25, como imagino, lhe garanto que o seu caso é bem interessante, que você promete muito. E o livro, neste caso, é bom. Mas se você já tem 30 ou 35 anos, já estudou muito e está homem-feito, não lhe posso dar aplauso que valha. Neste caso o livro fica medíocre. Fernando Sabino tinha 18 anos.

Drummond x Brasil
De Carlos Drummond de Andrade Para Mário: "O Brasil não tem atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis ou velhacos."


De Oswald de Andrade para Mário: "O Brecheret está fazendo um auto-retrato. Finalmente, vou ver um cavalo em tamanho natural."

Valsa Hippie?

Vinicius de Moraes e Chico Buarque haviam acabado de compor Valsinha. De forma inusitada, o poeta foi o responsável pela melodia e o compositor, pela letra da canção. Acontece que Vinicius, depois, enviou uma carta ao parceiro em que dava uma “aparafusada geral” nos versos. Também sugeria a mudança do título para Valsa Hippie: Parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona, justificou. As alterações desagradaram Chico, que tinha respeito quase paterno pelo poeta, 31 anos mais velho. Manteve, educadamente, a posição. O público tem recebido a Valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o Apesar de Você. Então dá um certo medo de mudar demais, explicou. Também insistiu na manutenção do título original, pois entendia que o termo era apenas modismo: Valsa Hippie é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí. Os argumentos foram aceitos, e a música ficou do jeito que estava.


Um contrato danado
Um amigo convidou Carmen Miranda para passar o Carnaval no Brasil. A cantora, que morava nos Estados Unidos, agradeceu o convite, mas declinou: Por agora em vez de “vesti uma camisa listrada e saí por aí”, infelizmente tem que ser “assinei um contrato danado e fiquei por aqui.”


Edson, Arantes e Nascimento
Campeonato Paulista de 1959, Santos e Juventus, estádio da rua Javari. É o jogo em que Pelé chapelou metade do time adversário para fazer o gol mais bonito da carreira. Mas o lateral-esquerdo da equipe juventina não viu o lance, que ocorreu aos 36 minutos do segundo tempo. José Pando estava no hospital; sofrera uma grave lesão na perna após uma dividida com o futuro rei ainda no primeiro tempo. Hoje, em decorrência do lance, Pando ostenta orgulhoso três cicatrizes no joelho: Edson, Arantes e Nascimento, explica, apontando para cada uma das marcas. “Agora carrego o Rei sempre comigo”, diz, entre risos. Não tem mágoa de Pelé. Pelo contrário. São só elogios. E emociona-se quando mostra uma carta que afirma ter recebido do jogador. Carrega várias cópias numa pochete que leva à cintura para mostrar a quem quiser ver. Nela, Pelé deseja um bom ano de 2003 para a família, e ainda faz um convite: Se quiser bater uma bolinha é só falar.

Fonte: www.almanaquebrasil.com.br

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