segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Vidas marcadas pelo preconceito

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A fé é uma das saídas encontradas pelos pacientes em tratamento
Foto: Natinho Rodrigues
Na Idade Média, a sociedade considerava a hanseníase um castigo de Deus para punir os impuros. No século XIX, quando proliferaram os aglomerados urbanos e a tuberculose adquiriu características epidêmicas, dizia-se que a enfermidade acometia pessoas enfraquecidas pela vida devassa que levavam.
Com a Aids, a mesma história: apenas os promíscuos adquiririam o vírus HIV. Mesmo em pleno século XXI com todo avanço da Medicina, cura para a maioria das doenças e controle de outras, essas três enfermidades ainda carregam forte estigma social e pior do que isso, continuam mais vivas do que nunca, vitimando não só o corpo do infectado, como muitas vezes, excluindo-o da vida cotidiana em sociedade.
Para infectologistas, como Anastácio Queiroz, os desafios para conter o avanço dessas moléstias no Ceará são muito grandes e parecem crescer a cada ano. A tuberculose, por exemplo, é a doença infecciosa que mais mata no mundo - quase tanto quanto a Aids e a dengue juntas.
Anualmente, no Ceará, 2,4 mil pessoas contraem a hanseníase, enquanto outras 3,5 mil, a tuberculose, e mais de mil, o vírus causador da Aids, o HIV.
O medo, a desinformação, o preconceito levam ao silêncio, à fuga, à negativa por parte da maioria dos doentes. A negligência é outro fator que potencializa o perigo maior à transmissão, o abandono do tratamento e o aumento da letalidade.
Elinaldo tentou suicídio, José Pedro, perdeu a família, Francisca, o emprego e amigos. Não, eles não são personagens da História que viveram nos anos 40, 50 ou 80 no Brasil. São pessoas em dias atuais infectadas pela hanseníase, como Elinaldo; tuberculose, como José Pedro e HIV, no caso de Francisca. Os três lutam pela vida e contra o forte preconceito social que, segundo eles, gera muitas vezes mais sofrimento e sequelas do que as próprias enfermidades.
Perdas
"O primeiro baque na minha vida, após o diagnóstico da hanseníase, foi perder minha esposa e filhos. Ela simplesmente me deixou, levando as crianças. Fiquei sem chão. Teve um dia que coloquei veneno na comida e fiquei mexendo e olhando para o nada. De repente, como ato de Deus, a luz do sol iluminou a foto de minha filha e deu uma vontade incontrolável de ligar a TV. Estava passando uma reportagem sobre um rapaz sem braços e pernas surfando. Pensei, se ele pode, eu também posso enfrentar a doença, a dor e o abandono. Acho que foi um milagre", conta o ex-comerciário Elinaldo de Lima Leal, de 34 anos.
Ele foi o único paciente do Centro de Referência Nacional em Dermatologia Sanitária Dona Libânia, situado no Centro de Fortaleza, a falar sobre o assunto. Ali, pelo menos 200 pessoas fazem tratamento e praticamente todas negaram ter a doença.
De acordo com a psicóloga Selma Câmara, geralmente, doenças que causam rejeição e preconceito provocam nos pacientes diversas reações, que variam de acordo com suas individualidades. A negação é uma dessas fases ou reações. "Os pacientes precisam enfrentar suas próprias dificuldades em relação à doença e também os preconceitos, que infelizmente, ainda vigoram. Vergonha, raiva, medo, fragilidade, insegurança povoam o universo dessas pessoas", diz ela.
A história de José Pedro Pereira, 31, é semelhante à de Elinaldo. Com diagnóstico da tuberculose, ele conta que "come o pão que o diabo amassou". "A vizinhança pediu logo que fosse embora da rua, pois não queriam ninguém "doente dos pulmões".
"Eles acham que somente com um olhar eu poderia transmitir a doença. Fui afastado do emprego, fiquei sem ter como me sustentar e minha família foi embora. Se não fosse por meu pai, que morreu dessa doença horrorosa no ano passado, nem sei o que teria sido de mim. Fiz promessas para todos os santos, me agarrei na fé para sobreviver. Hoje, tomo os remédios e tenho certeza de que ficarei bom. Meu maior sonho é ter meus filhos de volta", compartilha ele.
A primeira reação de Maria Francisca da Silva, 25, ao receber a confirmação de que tem o vírus transmissor da Aids, o HIV, no ano passado, foi chorar dia e noite. Depois veio o desespero e depressão. "Como iria ser minha vida dali por diante? Fiquei paralisada. Depois disso, passei a culpar meu ex-parceiro, Deus e o mundo. Nada me fazia tirar da cabeça que recebi uma sentença de morte. Foi preciso muita fé para buscar ajuda e começar a tomar o coquetel (medicamentos que controlam o vírus). Agora, mesmo com o afastamento dos amigos, vizinhos, de alguns familiares e sem conseguir emprego, eu tenho mais esperança no futuro", narra ela.
Cicatrizes
Na visão da professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Maria Dolores de Brito Mota, o estigma que acompanha essas pessoas é qualquer característica, não apenas física, visível, que não se coaduna com o quadro de expectativas sociais sobre determinado indivíduo ou grupo social. Geralmente, explica, as sociedades definem categorias acerca dos atributos considerados naturais, normais e comuns do ser humano.
"Defendo uma ação social ampla de construção de uma consciência cívica e cidadã através de uma disciplina sobre direitos humanos e diferenças, que deve ser ministrada desde a alfabetização até o ensino médio, considerando o nível de desenvolvimento e maturidade de cada classe escolar. Chegamos a um ponto que devemos assumir a importância dessa formação cidadã como fundamental para a nossa maturidade cívica", argumenta a professora.
Segundo Maria Dolores, as histórias de Elinaldo, Pedro e Francisca indicam que, apesar do esforço do setor público, a desinformação ainda é um gargalo ao diagnóstico e tratamento completo.
Lêda Gonçalves
Repórter
DN

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